quinta-feira, 2 de abril de 2009

SOBRE O "DISCURSO DA SERVIDÃO VOLUNTÁRIA"

Pessoal,
Sheila envia-me, e muito agradeço, um texto de Luciene Félix comentando o DISCURSO DA SERVIDÃO V0LUNTÁRIA.
Transcrevo-o na íntegra e torço para que mereça um pouquinho da atenção de vocês. O link para o DISCURSO... está em recente postagem neste mesmo blog.

A AÇÃO pode ser mais frutífera que a RECLAMAÇÃO.
{8¬)



Conhecimento Sem Fronteiras - Artigos de Filosofia

Discurso da Servidão Voluntária

A tirania não é ato de força ou violência de um homem ou de um bando de homens, mas nasce do desejo de servir e é o povo que gera seu próprio infortúnio, cúmplice dos tiranos” (Marilena Chauí)

Com “Le Discours de la Servitude Volontaire” (1552), compreendemos que a gênese da desumana opressão exercida pelos poderosos aos menos favorecidos é atemporal e universal. Escrita como um mero panfleto militante, aos 16 ou 18 anos pelo Pensador francês Etienne de La Boétie, enquanto estudante de Direito, esmiúça os porquês que levam a multidão a se permitir escravizar, cega e voluntariamente, a se dispor a servir.

Para La Boétie é o povo que se sujeita e se degola; que, podendo escolher entre ser súdito ou ser livre, rejeita a liberdade e aceita o jugo, consente tal mal e até o persegue. Como ocorre esse processo é sobre o que o autor se debruça. Etienne esclarece que o tirano obtém seu poder com a conivência do próprio povo subjugado e que a este bastaria decidir não mais servir, recusar-se a sustentá-lo para que se tornasse livre. São apontadas na obra, as três razões que culminam numa servidão voluntária.

Ao esmiuçar os meandros da servidão, revela como está em nós enraizada a vontade de servir, apesar de existir em nossa alma um germe de razão produtor da virtude (desde que alimentados pelos bons costumes e bons exemplos) e de que a própria natureza é justa (pois para esta, nenhum ser humano pode ser mantido em servidão). Os próprios animais prezam a liberdade e se recusam a servir; quando o fazem é por imposição.

Afirma também haver três tipos de tiranos, maus Príncipes: 1) os que o obtém o poder pela força das armas; 2) àqueles que o herdam por sucessão da raça e 3) os que chegam ao poder por eleição do povo. Os que o obtém pelo direito da guerra, agem como em terra conquistada; quanto aos reis, nascidos e criados no seio da tirania, consideram os povos a eles submetidos como servos hereditários, têm todo o Reino e seus súditos como extensão de sua herança. Quanto ao eleito pelo povo, não nos enganemos: ao se ver alçado a um posto tão elevado, tão alto – “lisonjeado por um não sei quê que chamam de grandeza” – toma a firme resolução de não abrir mão da res pública. “Quase sempre considera o poderio que lhe foi confiado pelo povo como se devesse ser transmitido a seus filhos”. Para La Boétie, é essa idéia funesta que o faz superar todos os outros tiranos em vícios de todo tipo e até em crueldades.

Para consolidar a nova tirania e aumentar a servidão, afastam toda e qualquer idéia de liberdade presente no espírito do povo. Em resumo, independente de como chegam ao poder, o modus operandi é quase sempre o mesmo: os conquistadores vêem o povo como uma presa a ser dominada; os sucessores como um rebanho que naturalmente lhes pertence e, por fim, os eleitos tratam-no como bicho a ser domado.

La Boétie salienta que “Para que os homens, enquanto neles resta vestígio de homem, se deixem sujeitar, é preciso uma das duas coisas: que sejam forçados ou iludidos. Iludidos, eles também perdem a liberdade; mas, então, menos freqüentemente pela sedução de outrem do que por sua própria cegueira.” O povo cai em tão profundo esquecimento de seus direitos que é quase impossível acordá-lo. Serve tão mansamente e de tão bom grado que, ao observá-lo no torpor da servidão, se poderia dizer não que tenha perdido totalmente a liberdade, mas que nunca a conheceu: “no início serve-se contra a vontade e à força; mais tarde, acostuma-se, e os que vêm depois, nunca tendo conhecido a liberdade, nem mesmo sabendo o que é, servem sem pesar e fazem voluntariamente o que seus pais só haviam feito por imposição. Assim, os homens que nascem sob o jugo, alimentados e criados na servidão, sem olhar mais longe, contentam-se em viver como nasceram; e como não pensam ter outros direitos nem outros bens além dos que encontraram em sua entrada na vida, consideram como sua condição natural a própria condição de seu nascimento”.

A primeira razão da servidão voluntária é o HÁBITO. Por hábito, somos ensinados a servir, nos escravizamos. É o costume que, à medida em que o tempo passa, nos leva não somente a engolir, pacientemente, os sapos venenosos da escravidão, mas até mesmo a desejá-lo: “pois por melhor que seja, o natural se perde se não é cultivado, enquanto o hábito sempre nos conforma à sua maneira, apesar de nossas tendências naturais.”

Sendo assim, de se nascer servo e ser criado na servidão decorre naturalmente a segunda razão da servidão voluntária: a COVARDIA! Sob a tirania (mesmo que disfarçada), necessariamente os homens se acovardam, se escravizam: “Os escravos não tem ardor nem constância no combate. Só vão a ele como que obrigados, por assim dizer embotados, livrando-se de um dever com dificuldade: não sentem queimar em seu coração o fogo sagrado da liberdade, que faz enfrentar todos os perigos e desejar uma bela e gloriosa morte que nos honra para sempre junto aos nossos semelhantes. Entre os homens livres, ao contrário, é à discussão, polêmica, cada qual melhor, todos por um e cada um por todos: sabem que colherão uma parte igual no infortúnio da derrota ou na felicidade da vitória; mas os escravos, inteiramente sem coragem e vivacidade, têm o coração baixo e mole, e são incapazes de qualquer grande ação. Disso bem sabem os tiranos; assim, fazem todo o possível para torná-los sempre mais fracos e covardes. Artimanha dos tiranos: bestializar seus súditos!”.

Também como instrumentos de alienação, verdadeira mantenedora da tirania, a fim de adormecer o povo, súditos da escravidão, disponibiliza-se todo e qualquer meio de distração: drogas, tavernas, casas de prostituição, jogos, lutas públicas, fanfarras, enfim, toda sorte de iscas para o entorpecimento: caras, bundas, sejam puro-sangues ou égüinhas pocotós. Não há então necessidade de precaver-se contra o povo ignorante e miserável, fácil e bestialmente entretido e domesticado com tolices vãs: “Os tiranos romanos foram longe [na política do pão e circo], festejando freqüentemente os homens das decúrias (homens do povo, agrupados de dez em dez, e alimentados às custas do tesouro público), empanturrando essa gente embrutecida e adulando-a por onde é mais fácil de prender, pelo prazer da boca. Por isso, o mais instruído dentre eles não teria largado sua tigela de sopa para recobrar a liberdade da República de Platão. Os tiranos distribuíam amplamente o quarto de trigo, o sesteiro de vinho, o sestércio [bolsa-família romana]; e então dava pena ouvir gritar: Viva o Rei! Os broncos não percebiam que, recebendo tudo isso, apenas recobravam uma parte de seu próprio bem, e que o tirano não teria podido dar-lhes a própria porção que recobravam se antes não a tivesse tirado deles mesmos. O que hoje apanhava o sestércio, o que se empanturrava no festim público abençoando Tibério e Nero por sua liberalidade, no dia seguinte, ao ser obrigado a abandonar seus bens à cobiça, seus filhos à luxuria, sua própria condição à crueldade desses magníficos imperadores ficavam mudos como uma pedra e imóvel como um tronco”. Subserviente, iludida e enfeitiçada é a massa de ignorantes! “A covardia é a mãe da crueldade” (Montaigne). Nós mesmos, pacífico povo brasileiro, temos tradição, orgulhamo-nos de nossa mansidão e vivemos um paradoxo pois a violência é efeito (e não causa) da servidão voluntária.

Discorrendo sobre a terceira razão da servidão voluntária, a PARTICIPAÇÃO NA TIRANIA, La Boétie aponta quem são os interesseiros que se deixam seduzir pelo esplendor dos tesouros públicos sob a guarda do tirano, os que, em conluio, garantem e asseguram seu poder: “são sempre quatro ou cinco homens que o apóiam e que para ele sujeitam o país inteiro. Sempre foi assim: cinco ou seis obtiveram o ouvido do tirano e por si mesmos dele se aproximaram ou então, foram chamados para serem os cúmplices de suas crueldades, os companheiros de seus prazeres, os complacentes para com suas volúpias sujas e os sócios de suas rapinas. Tão bem esses seis domam seu chefe que este se torna mau para com a sociedade, não só com suas próprias maldades, mas também com as deles. Esses seis têm seiscentos que debaixo deles domam e corrompem, como corromperam o tirano. Esses seiscentos mantêm sob sua dependência seis mil, que dignificam, aos quais fazem dar o governo das províncias ou o manejo dos dinheiros públicos, para que favoreçam sua avareza e crueldade, que as mantenham ou as exerçam no momento oportuno e, aliás, façam tanto mal que só possam se manter sob sua própria tutela e instar-se das leis e de suas penas através de sua proteção. Grande é a série que vêm depois deles. E quem quiser seguir o rastro não verá os seis mil mas cem mil, milhões que por essa via se agarram um outro sua satisfação, sua liberdade, seu corpo e sua vida! Mas eles quereao tirano, formando uma corrente ininterrupta que sobe até ele. Daí procedia o aumento do poder do senado sob Júlio César, o estabelecimento de novas funções, a escolha para os cargos – não para reorganizar a justiça, mas sim para dar novos sustentáculos à tirania. Em suma, pelos ganhos e parcelas de ganhos que se obtêm com os tiranos chega-se ao ponto em que, afinal, aqueles a quem a tirania é proveitosa são em número quase tão grande quanto aqueles para quem a liberdade seria útil. Que condição é mais miserável que a de viver assim, nada tendo de seu e recebendo de um outro sua satisfação, sua liberdade, seu corpo e sua vida! Mas eles querem servir para amealhar bens”.

Com isso vislumbra-se a rede da servidão. Frágil por natureza, de onde, a todo instante despontam os escândalos pois, o tirano não tem amigos, não ama nem é amado: “O que torna um amigo seguro do outro é o conhecimento de sua integridade. Entre os maus, quando se juntam, há uma conspiração, não uma sociedade; Eles não se entre-apóiam mas se entre-temem. São cúmplices”.
Na ilusão de que estamos livres, fundamentam-se os três caminhos que nos levam a servidão (hábito, covardia e participação). Não estamos. Mas podemos vir a ser. Pois, quanto a resgatar a Liberdade, nos invade de esperanças Aristóteles:
“A Justiça [também] é um hábito que nunca morre”.


Autora: Luciene Félix (Professora de Filosofia e Mitologia Greco-Romana da ESDC)
Escola Superior de Direito Constitucional - ESDC 55 (11) 3663-1908 - www.esdc.com.br

Saiba mais:
Etienne De La Boétie. Discurso da Servidão Voluntária. Tradução: Laymert Garcia dos Santos. Comentários: Claude Lefort. Pierre Clastres e Marilena Chauí. Editora Brasiliense. São Paulo, 1982


2 comentários:

Luciene Felix disse...

Que honra "Pitaquento"!
Fico feliz que tenhas apreciado minha apresentação do "Discurso da Servidão Voluntária".
Um grande beijo amigo,
Luciene Felix

Shasça disse...

Luciene,
Este texto do La Boetie é fundamental porque explica muito sobre quem manda,quem obedece e por qual razão isto acontece da forma que acontece.
Como tá no caput d'O PITAQUENTO, prefiro a ação que a reclamação. Daí, acredito que este DISCURSO deve ser apresentado e dicutido em escolas pois, talvez assim, construiamos a tal cidadania.
Bejotas pra ti
{8¬)